Pensar a condição da Mulher a partir das favelas cariocas
Por Eliana Sousa Silva*
As violências contra as mulheres, com ênfase para o abuso sexual que se materializa, em muitos casos, em estupro, estão na ordem do dia no Brasil. Diante da gravidade do fato, é positiva a atenção que o tema vem recebendo, assim como o esforço de muitas e muitos para romper com sua naturalização. A minha compreensão sobre essa questão foi construída a partir da favela onde cresci e residi por 28 anos: Nova Holanda, Maré, Rio de Janeiro.
Neste território, que não é diferente de outros da cidade, aprendi a reconhecer as relações sexistas como uma raiz central das violências direcionadas às mulheres, apesar de características peculiares às condições que a realidade da favela apresenta. Ali, a cultura do estupro se faz presente, historicamente, como em outras partes da cidade, mas foi sofrendo sanções diferenciadas durante os anos. Nesse sentido, remeto-me a um fato da década de 70, quando eu era criança: um morador próximo a minha casa ficou conhecido como tarado porque tinha como prática agarrar mulheres. Na ocasião, quando encontrávamos com ele, eu e algumas amigas gritávamos: “- Tarado!” e corríamos. Ele ficava procurando quem gritara, começava a vozear e nos xingar. Ele era hostilizado frequentemente e vivia sozinho, a mulher o havia deixado.
Já na década de 80, relembro de duas situações impactantes: um homem foi acusado de abusar de uma criança. Diante da situação, o chefe do grupo armado, à época, que era apenas um adolescente, mas com forte carisma, o vestiu de mulher e o aleijou, dando um tiro em cada joelho do abusador. A partir dali, ele ficou marcado e passou a ser objeto de ofensas e interdições. Na segunda situação, outro chefe de grupo armado teve uma postura mais extrema: um homem acusado de ter estuprado uma mulher foi aprisionado pelos traficantes, fortemente agredido, morto, o pênis cortado e exposto num carrinho de madeira. Nesse caso, há moradores que até hoje dizem que foi um castigo injusto, pois não teria sido essa pessoa a estuprar e, sim, o irmão. Tudo isso de forma exposta à execração pública a fim de servir como exemplo para outros. Dessa forma, desde aquela época, o estupro, assim como o roubo, o assalto ou o homicídio sem autorização do chefe do grupo armado, passaram ter como sentença a condenação à morte. O mesmo acontece em muitas favelas cariocas. Desse modo, o estupro numa via pública é fortemente inibido nessas regiões. Já os abusos sexuais, por sua vez, que acontecem em espaços privados e, muitas vezes, são realizadas por familiares, nem tanto.
Em que pese à aberração de pensar que esse tipo de violação ocorra no Rio de Janeiro e haja grupos civis armados, que em determinados regiões da cidade possam exercer o tipo de prática apresentada, sem qualquer intervenção do Estado e do sistema de justiça; o interdito, na minha compreensão, daquele tipo de estupro é que a reparação não se deriva pelo reconhecimento do respeito ao corpo e a garantia de direitos das mulheres, longe disso. Na realidade, é comum o próprio companheiro, namorado ou marido de uma mulher ocupar, às vezes, o lugar do estuprador, sendo, em alguns casos, permitido, inclusive, se patrocinar estupros coletivos, como o que pode ter ocorrido no episódio que veio a público em 26 de maio do corrente ano.
Cabe salientar que essa violência é tão antiga e recorrente que foi criado um termo específico para defini-la, e que, raramente, tem sido utilizado nos debates: curra. A curra é tão antiga quanto às classes e se faz presente em toda a história feminina, legitimada desde a origem pelas interpretações religiosas, em particular as monoteístas, que colocam a mulher em posição inferior e como representação do mal, devendo, por isso, ser cerceada, controlada, punida, reprimida e castigada quando expressa posicionamentos autônomos, que escapam da autoridade masculina tradicional.
A palavra HOMEM para nos designar como espécie humana, que inclui o homem e a mulher, demonstra o não reconhecimento de que a mulher deveria ser pensada de maneira independente e na sua especificidade como gênero. Ou seja, como bem propalou a filosofa Simone de Beauvoir “Ninguém nasce mulher: torna-se mulher”. Nesse sentido, o que caracteriza a feminilidade não se relaciona com o que as mulheres carregam de biológico, mas sim pelo que foi acumulado do ponto de vista da cultura e das crenças semeadas historicamente.
É crucial reconhecer que se naturalizou historicamente a violência contra as mulheres, sendo essa um processo que se relaciona com as relações de poder estabelecidas na sociedade. As distintas ações/violências, com enfoque de gênero, que de forma proposital provocam numa mulher dor física, sexual e psicológica, seja no âmbito privado ou público, como é o caso do estupro, ocorrem como consequências de uma prática, essencialmente, masculina.
Fui adquirindo um juízo crítico ao sexismo em meu processo de ampliação do repertório cultural, social e educacional. Conheço muitas mulheres nas favelas que ainda não colocaram o machismo em questão e o naturalizam como inerente às relações homem-mulher. Nesse sentido, tenho clareza que há um imenso desafio para ampliar a compreensão da maioria das mulheres e, também, dos homens das favelas sobre os direitos femininos e a superação do processo de transformação da diferença de gênero em desigualdade. Assim como as lutas raciais, as lutas de gênero, como movimentos organizados, ainda são hegemonizadas, infelizmente, pelas mulheres dos setores médios. Isso, sem dúvida, precisa mudar e de forma urgente. Percebo, contudo, que há um movimento, ainda, incipiente, de muitas mulheres das favelas, principalmente as mais jovens, e a partir de novas referências culturais, colocarem em questão a supremacia do masculino e criticarem quando elas adquirem expressões hipervirilizadas.
A nossa busca deve ser pela incorporação de mais e mais mulheres para esse campo de luta, reconhecendo que os homens precisam ser questionados e trazidos para esse debate, pois eles são parte do problema e, também, da solução. Temos de formar nossos filhos, filhas, netos e netas numa perspectiva social e humana que tenha como base a empatia, a necessidade de reconhecer o direito, a dor e a alegria do outro, da outra. Apenas desse modo será possível desnaturalizar essa forma de opressão tão vil, criando formas de relacionamento nos quais mulheres e homens possam ser apenas pessoas, iguais nas suas diferenças, nos seus anseios e busca de uma vida plena, livre e segura.
* Eliana Sousa Silva coordena a organização não-governamental Redes de Desenvolvimento da Maré (REDES). Formada em Letras pela UFRJ, com mestrado em Educação e doutorado em Serviço Social pela PUC/RJ, é diretora da Divisão de Integração Universidade Comunidade da Pró Reitoria de Extensão da UFRJ. Parte da sua trajetória é contada no livro Testemunhos da Maré (Editora Aeroplano, 2002).