Tardes de domingo

#AgoraÉQueSãoElas

O caso de estupro coletivo de uma menina de 16 anos no Rio de Janeiro iniciou um debate público em escala inédita sobre a cultura do estupro no Brasil. Muitas dinâmicas pedem nossa atenção. A violência compartilhada nas redes como glória e assim percebida por muitos. A reação rápida online e offline de feministas e aliados na defesa dos direitos das mulheres. A culpabilização da vítima. O atendimento inadequado da vítima por parte do Estado. O punitivismo contido nas demandas por outras respostas para os atos cometidos que não a investigação, o julgamento justo e o cumprimento de sentença estabelecida ao final deste processo. Tudo isso precisa ser observado com cautela para que avancemos. Para que superemos o mecanismo de aceitação e replicação de conceitos que normalizam o estupro com base em construções sociais sobre gênero e sexualidade que define a cultura do estupro.

Comovida diante do caso, a cantora e escritora Olívia Byington dividiu com o #AgoraÉQueSãoElas trecho inédito de seu livro “O que é que ele tem?”.

O IPEA, em pesquisa lançada em 2014, estima que no mínimo 527 mil pessoas são estupradas por ano no Brasil, sendo que apenas 10% dos casos são notificados.

89% das vítimas destes atos violentos são mulheres.

No texto abaixo, Olívia conta como ela passou a compor essa estatística. Ainda menina, ela também foi vítima de violência sexual – esse debút macabro que hoje infelizmente marca a entrada de mulheres de todas as classes e raças em nossa sociedade machista.

Tardes de domingo

Por Olívia Byington*

Era domingo, dia da semana que sempre me deixou melancólica. Tardes de domingo me lançam no pior da minha infância: uma luz fraca de teto acesa, a volta ao colégio, as obrigações maçantes do dia seguinte, o som de algum rádio transmitindo o futebol, a vinheta do Fantástico, as lições de casa por fazer. Essa tristeza dentro de mim se repete até hoje com hora marcada.

Saí de casa para pegar um ônibus no hoje abandonado Hotel Nacional. Ali ao lado estava em construção um grande complexo de prédios e o shopping Fashion Mall. Era um lugar ermo e nada seguro. Me despedi de minha irmã Elisa, que me disse da janela:

— Boa sorte!

Alguns passos adiante, fui abordada por um sujeito que pediu para que eu o abraçasse. Senti a ponta da faca na barriga.

— Vai em frente ou eu te furo.

Fui andando devagar, torcendo para que algum carro percebesse que aquela encenação insólita era um assalto. Entretanto, era quase noite e os automóveis cortavam a pista velozmente. Éramos invisíveis. O algoz me encaminhou para o campo de golfe deserto e, quanto mais andávamos gramado escuro adentro, mais eu sabia o que me esperava. O homem me rasgou a camisa e se pôs sobre mim como um animal selvagem. Não suportei o asco, a ojeriza, o horror e o empurrei com toda a fúria. Sem raciocinar, tentei escapar, reagi, dei alguns passos me defendendo dos golpes, ele perdeu a faca no gramado e saiu agachado no escuro procurando a arma. Enfurecido partiu para cima de mim aos murros e chutes até estar certo de ter acabado o serviço. Eu havia percebido que a luta só teria fim com a minha própria morte e parara de reagir e de respirar. Senti o seu último golpe, que foi arrancar uma pulseira de ouro do meu pulso . Era um presente da minha avó paterna, lembrança que ela dava para todas as netas ao completarem quinze anos. Adorava aquela pulseira, que no meu braço convivia com tirinhas de couro e surradas fitinhas do Senhor do Bonfim. Agora sentia os elos da corrente rasgando minha pele, e a seguir o silêncio. Conheci a beira da morte debaixo da imensidão das estrelas, o corpo estendido e a sensação da força da gravidade diminuindo contra o gramado úmido. Me agarrei a um último fiapo de energia e caminhei até a estrada (hoje a Lagoa-Barra). Alguma força milagrosa me trazia de volta ao mundo dos vivos. Quase tive que me atirar debaixo de um carro para conseguir socorro e seguir para o hospital Miguel Couto, e depois para a clínica do cirurgião plástico Ivo Pitanguy, de onde fui sair vinte dias depois com ataduras no nariz fraturado, um trauma na coluna cervical e um princípio de descolamento de retina.

Nas trevas, estive corpo a corpo com a crueldade sem limites. Esse acontecimento me deu a consciência profunda, marcada na carne, da dimensão infinda da maldade, da violência e do ódio nos olhos de um semelhante. Não na tela do cinema, nem na manchete do jornal, mas na pele. Passei a olhar o mundo com menos glamour e saber que assassinos andam à solta e podem estar esperando você na próxima esquina.

*Olívia Byington é cantora e escritora. O livro “O que é que ele tem” será lançado dia 21 de junho pela editor Objetiva/Companhia das Letras, na livraria Argumento, do Leblon.