A mulher que me olha
Por Mariana Gesteira*
A mulher que me olha no espelho me vê usando turbante e roupas coloridas. A mulher que me olha no espelho vê uma cabeleira grande e cheia, com cachos; seus lábios grossos usam batom vermelho intenso. A mulher que me olha no espelho vê, através dos meus olhos, uma alma que já foi picotada e costurada diversas vezes, que já foi queimada e chegou até as cinzas e de lá voltou mais forte. A mulher que me olha no espelho sorri para mim e eu sorrio para ela. É bom habitar este corpo. Sinto-me confortável na pele que habito, em paz com a minha negritude, com o frizz do meu cabelo, com minhas estrias, celulites e tudo aquilo que me faz humana. Já não me importo com padrões e nem sei onde é o meu lugar (pois poderia ser qualquer um). Mas nem sempre foi assim… Esse mosaico que me tornei é atravessado por diversas vozes, territórios e afetos.
A mulher negra com seu cabelo black que me olha ao lado sorri, e eu sorrio de volta. Ela me diz que estou linda e eu lhe digo o mesmo. Somos cúmplices: ela sabe que nossas dores são as mesmas e que ter autoestima para nós é uma conquista. Crescemos à sombra, em terra seca e batida, vicejar não era esperado, menos ainda, florescer. Sabemos o quanto é difícil acreditar quando à frente vemos apenas brumas. A mulher negra e pobre nem sempre consegue me olhar ao lado, ela costuma me olhar de baixo, e não me orgulho disso. Embora nossa origem social seja frequentemente semelhante, sei que gozo de alguns privilégios por ser negra de pele clara, por minha ascensão social e por possuir alto nível de escolaridade. Sei que muitas sentem dores que nunca senti, e, provavelmente, jamais sentirei, mas não deixo de me entristecer, de me indignar e de ser solidária.
A mulher branca que me olha ao lado por vezes quer ser minha amiga, me acha estilosa, bonita e inteligente. Outras vezes, a mulher branca que me olha, prefere me ver de cima. Acha que sou feia ou exótica, chama meu cabelo de duro e ruim e fará de tudo para me colocar naquilo que acha que é “o meu lugar”. Desculpe-me, minha irmã branca, não me odeie por isso, mas dentro de você, independentemente de sua classe social, existe uma sinhá. Sei que não é por maldade, mas sim pelo tipo de herança que recebeu. O racismo é uma construção histórica e cultural que vem sendo mantido de maneira a preservar privilégios de um grupo étnico sobre o outro. O maior de seus problemas é a sua naturalização que invisibiliza o olhar sobre a desigualdade. É preciso, então, se tornar consciente do racismo nosso de cada de dia para não o reproduzir. Reconhecer a sinhá que existe em você é importante para mantê-la sob controle e ser capaz de desvelar os jogos de poder que existem nas relações. Portanto, minha irmã branca, não se sinta ameaçada com a minha presença quando não estou ali para servi-la, mas ocupando os mesmos espaços. Cada vez mais será comum disputarmos a mesma vaga no emprego e sentarmos lado a lado numa universidade, num aeroporto ou num restaurante. Por favor, não me odeie por, às vezes, me destacar mais do que você. Não me odeie ou faça piadas por estar mais bem vestida ou saber coisas que você desconhece. Não tente me deslegitimar ou desqualificar. E caso venha a ser minha chefe, não me trate como sua “empregadinha”. Lembre-se: apenas desejamos ter aquilo a que você já tem acesso.
Não acredito em meritocracia; a vida é tremendamente circunstancial. Nossos caminhos são mediados por encontros, afetos e contextos sobre os quais não temos o menor controle. Claro que houve e há esforço na minha trajetória pessoal, mas tudo seria tão mais simples se não houvesse tanta desigualdade neste mundo. Uma pessoa branca encontra “facilidades” que nem tem consciência de que as possui. Nesse aspecto, o racismo é também danoso para os brancos, pois crescem com um sentimento de que merecem mais e de que são melhores, de que têm direitos e não privilégios. Posso imaginar o que sente um branco ao entrar numa universidade pública com notas mais altas que um cotista, tendo estudado em excelentes escolas, e perceber que seu colega negro começa a tirar notas mais altas durante o curso de graduação. Pois é, tudo é tão mais complexo… Mesmo com todo o merecimento do mundo uma pessoa negra não deixa de sofrer racismo. Nós, mulheres e homens negros, carregamos uma herança cruel dupla: mais de 300 anos de escravidão neste país, seguida de uma política pública eugenista embranquecedora no início do século XX que não deu nenhuma chance aos nossos antepassados.
Todas nós mulheres recebemos heranças culturais, sociais e históricas diferentes e é preciso reconhecer de onde partimos. Nossas diferenças não são para nos desunir e nos enfraquecer, ao contrário: é importante perceber a diversidade e nos ouvirmos. É assim que desenvolvemos empatia umas pelas outras e fortalecemos a luta por igualdade de gênero.
Como ser transitante e meio fora de lugar, sinto que meu território mais fixo é este meu corpo de mulher negra que levarei até o fim da vida. É a partir daqui que olho.
*Mariana Gesteira é mulher, negra, carioca de todas as partes e taurina com ascendente em escorpião.