Ser mulher e economista
Por Tássia de Souza Cruz *
A questão da discriminação por gênero chegou tarde para mim. Sempre fui indiferente a comentários e olhares depreciativos por me sentir confortável com o que era e pretendia ser no futuro. E assim foi até iniciar o doutorado. Sou economista e escolhi fazer pesquisa quantitativa voltada à educação. Busquei assim um curso que abrangesse as duas áreas, o de economia da educação no departamento de educação da Universidade de Stanford (EUA), onde conclui meu doutorado em 2015. Mesmo num departamento de educação, em que a maioria dos estudantes de pós-graduação, no caso de Stanford, é mulher (e no Brasil não é diferente), existe uma divisão clara de quem são os professores de métodos quantitativos. Homens em maioria gritante. Um desavisado concluiria que isso acontece porque os poucos homens que escolhem pesquisar educação têm preferência por métodos quantitativos e acabam se tornando professores. Ou questionaria se seriam os homens em geral melhores em matemática? Ou teriam as mulheres que se provar superiores aos homens para serem consideradas igualmente capazes em métodos quantitativos?
Já nos departamentos de economia do Brasil, a escassez de professoras passa praticamente despercebida, sob o véu de que não existe uma oferta de economistas mulheres competentes o suficiente para assumirem esses postos. Caso surgisse essa oferta, argumenta-se, certamente a meritocracia não as deixaria de fora. Quando o problema é reconhecido, a hipótese de existir um viés discriminatório é frequentemente silenciada. É o caso da matéria publicada na Folha em setembro passado, na qual gravidez é citada como principal motivo para termos poucas professoras nos departamentos de economia, fator que supostamente afetaria a capacidade de publicar artigos. No mais, o texto dá exemplos de economistas mulheres que “chegaram lá”, prevalecendo o tom poliana do “sim, é possível”. Neste e em tantos outros casos parece ainda não estar claro que não importa o que essas mulheres fizeram pra “chegar lá”, elas são uma minoria irrisória em um mar de mulheres competentes que não chegaram. Seguir os passos delas não é garantia de um horizonte mais igualitário para as mulheres no futuro se os homens que dominam esses departamentos continuarem contratando apenas outros homens.
Nos ambientes de trabalho dominados por homens, qualquer ato considerado “feminino” é habitualmente tido como um deslize, como se esse ato demonstrasse o que já é esperado da mulher: que ela é mais frágil, que ela é instável emocionalmente, que mais cedo ou mais tarde ela vai querer ter filhos e não vai “produzir” tanto quanto um homem. Outro clichê feminino é o da mulher histérica. A matéria de capa da revista IstoÉ desta semana, que especula sobre o estado emocional da presidente da República, é um exemplo insuportavelmente misógino dessa expectativa. Ali, as escolhas da presidente não correspondem a suas convicções políticas – equivocadas ou não – mas a um destempero, a uma histeria, a um descontrole emocional comum, a matéria quer nos fazer crer, às mulheres.
Certa vez, ao falar sobre uma das mais respeitadas pesquisadoras do mundo, um colega dizia que ela era uma mulher excepcional. Exclamava: “Uma economista impressionante, aquela mulher! Aquela mulher sabe de economia!” A ênfase na palavra “mulher” subentendia a crença de que aquela pesquisadora quase não era uma mulher, afinal, não se espera que uma mulher entenda do assunto. Aquela de fato é uma pesquisadora excepcional, e se encaixa no ideal de perfeição que se exige de uma economista. Impecável na aparência, sua figura não demonstra qualquer vulnerabilidade, sua personalidade assertiva transmite apenas certezas, ela faz questão de deixar claro que sua vida particular é algo desimportante ante a profissão. Mas aquela pesquisadora é, sim, uma mulher, e ela entende bem o que sucesso na profissão exige do gênero feminino. O sucesso de uma economista – e de tantas outras profissões – exige que a mulher jogue o jogo “como um homem”, exige que ela não apresente nenhuma característica “feminina”, exige que ela não dê brechas para que pensem que ela possui fragilidades ou que ela pensa, por exemplo, em ter filhos. Não, aquela pesquisadora excepcional que entende de economia não pensa em ter filhos.
As demais mulheres que querem ter filhos devem aceitar então a diferença salarial por esse desejo “feminino”. Em geral, mulheres recebem significativamente menos que homens pelo mesmo trabalho realizado, sob a justificativa de que elas produzem menos pelo “risco” de terem filhos, ainda que diversos estudos tenham demonstrado estatisticamente que a diferença salarial entre homens e mulheres não se explica estritamente por diferenças em produtividade. Mulheres não recebem menos porque são menos produtivas. É impressionante que muitos prefiram ignorar esses resultados e olhar apenas as poucas sobreviventes que “chegaram lá”, supostamente demonstrando que seria possível para todas, se quiséssemos.
O problema é então colocado como se fossem as próprias mulheres que valorizam menos o sucesso profissional. É comum ouvirmos que mulheres são boas para “colocar a mão na massa”, que são naturalmente mais sociáveis e têm maior empatia. Essas características são menos valorizadas no mercado de trabalho que outras habilidades intelectuais, mas é mais fácil pensar que as diferenças salariais se devem às escolhas das mulheres, e não às expectativas que se têm em relação a elas. Por outro lado, quando a mulher não atende a essas expectativas, e não é simpática como espera-se, ela é tida, claro, como desequilibrada.
Diz-se ainda que as mulheres são avessas ao risco, que preferem empregos mais estáveis e aceitam receber menos. Penso se alguma das mulheres que hoje lê este texto jamais passou por uma situação constrangedora na determinação do seu salário ou crescimento no emprego, ou no simples pagamento pelos serviços competentemente prestados, que muito provavelmente não teria ocorrido fosse um homem na mesma situação.
Pesquisadores já estimaram para diversas carreiras profissionais o quanto das diferenças salariais vêm das escolhas das mulheres, e demonstraram que as decisões das mulheres não são suficientes para explicar toda a diferença. Existe algo a mais, que se reflete nas diferentes oportunidades de crescimento profissional disponíveis para as mulheres. Enquanto isso, a diferença salarial e a discriminação por gênero continua sendo um problema aparentemente sem solução para o futuro próximo.
Sinto ainda a triste urgência de desconstruir algumas falsas verdades envolvendo mulheres economistas (e de tantas outras profissões): as mulheres não nascem com maior facilidade para a linguagem e dificuldade para exatas. As mulheres podem, sim, pensar o mundo através de modelos, como fazem os e as economistas; os números podem, sim, atraí-las. As mulheres não possuem habilidade inata para “colocar a mão na massa”, elas são tão intelectualmente capazes quanto os homens. Elas não deveriam se masculinizar para serem consideradas “produtivas”, tampouco sofrem qualquer tipo de distúrbio se forem mais “masculinas”. Finalmente, não é aceitável fazer piadas e insinuações depreciativas sobre a sua aparência no ambiente de trabalho (o que muitas vezes vêm também na forma de “elogio” à beleza). Todas essas expectativas e atitudes são demonstrações do preconceito e discriminação, infelizmente, enfrentados ainda hoje por nós.
*Pesquisadora em economia da educação, possui PhD e mestrado pela Universidade de Stanford. Trabalhou na Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da República e atualmente trabalha como consultora em pesquisas educacionais.