Da Amélia à Jéssica e Maria da Vila Matilde: representações da mulher de verdade

#AgoraÉQueSãoElas

Por Tata Amaral*

Cresci ouvindo que “Amélia era mulher de verdade” porque “ela não pensava em luxo ou riqueza”. Até gostava de passar fome ao lado de seu homem! E mais: quando o via contrariado dizia “meu bem, o que se há de fazer?”

Havia, de minha parte, um confuso sentimento em relação à Amélia: por um lado, sentia um certo fascínio por aquela mulher de verdade, sem vaidade e que não pensava em luxo ou riqueza. Por outro lado, não a reconhecia em nenhuma mulher da minha família.

Amélia era muito, muito boazinha. Muito abnegada. Nada a ver com as minhas mulheres. Mãe, tias, avós, tias-avós, todas tinham opiniões –  expressadas o tempo todo –  trabalhavam, compravam roupas e se maquiavam, passeavam, muitas vezes sozinhas, sem os maridos. Nem mesmo minha avó paterna, pessoa de extrema bondade cujo olhar nos compreendia e acolhia antes mesmo de dar bom dia, nem mesmo ela tinha a ver com Amélia, batalhadora e determinada que foi.

Sim, desejei que as minhas mulheres fossem um pouquinho Amélia. Um tiquinho só! Mas, ao mesmo tempo, sempre houve um abismo entre as mulheres que povoavam meu imaginário e Amélia.

Gostava de ver minha mãe se posicionando: observei, com espanto e admiração, quando subiu nas tamanquinhas ao testemunhar um comentário preconceituoso sobre uma amiga sua, negra. Ficou furiosa. Sempre ficava quando via uma injustiça. Tão longe da Amélia, super boazinha! Além de capaz de uma braveza só, minha mãe tinha vaidade, sim. Eu a via diante do espelho se arrumando, se cuidando, cheia de olhares marotos para meu pai, mas também para seu bel prazer. Eu sentava na cama para vê-la se arrumar e fazia isto quando minhas tias se arrumavam também. Por que eu gostava tanto de vê-las diante de sua vaidade?

Talvez houvesse  ali uma construção do feminino que me fascinava e fascina até hoje: uma mulher diante do espelho esculpindo sua imagem. Cada mulher diante de um espelho é um universo! Quase todos os meus filmes começam com uma mulher diante do espelho.

Em 1979, minha filha nasceu. Desde sempre, eu amava ir ao cinema e ela cresceu assistindo filmes no meu colo. Em meados da década de 1980, ela já era grandinha mas ainda não sabia ler legendas, não tinha sido alfabetizada. Percebia as imagens, seus significados, seus símbolos. Nesta época, Hollywood já havia se reerguido da crise dos anos 70. O cinema norte-americano abandonara os personagens outsiders, o cinema de experimentação e contestação. Hollywood produzia, quase que exclusivamente, filmes de aventura, ficção científica ou ação. Minha filha, insistentemente me perguntava, sempre que aparecia um personagem negro:

“Ele vai morrer?”

“Não”, eu respondia. “Acho que não.”

Mas, batata! Ela tinha razão. O personagem negro morria!

Filme após filme, os negros morriam nas histórias de Hollywood! Mais ainda: pessoas como eu, pele branca e cabelos negros, homens (sempre homens) que podiam ter origem latina ou árabe, eram exclusivamente representados como traficantes, ladrões, mentirosos, dotados de toda sorte de defeitos morais. Insisto: meados dos anos 80, quase vinte anos antes da xenofobia norte-americana dos anos 2000, alimentada pelo ataque às Torres Gêmeas. Ou seja: pelo menos desde os anos 80, a indústria norte-americana, a maior propagadora de valores do mundo, propagou, de maneira subliminar – mas nada sutil – que os negros servem para morrer e os latinos ou árabes estão associados ao crime e não são confiáveis.

Nos anos 2000, realizei um documentário sobre hip hop em Santo André chamado “Vinte Dez”. Entrevistei uma menina de uns 14 anos que deu um depoimento marcante: desde pequena assistia ao programa da Xuxa, que passou a ser o modelo de mulher e de beleza para ela e sua geração. Tudo bem, as crianças adotam modelos mesmo. O único problema é que a Xuxa era alta, loira, magra, de cabelos lisos. A menina, ao contrário, era baixinha, gordinha e tinha cabelo crespo. Não se parecia com a Xuxa. Embora ela gostasse do programa e assistisse todos os dias, não havia nenhuma representação positiva de uma menina como ela. Ela se sentia inferiorizada.

Logo a seguir, realizei o filme “Antônia” que conta a história de quatro jovens cantoras negras que moram na periferia. Elas têm um grupo de rap e querem viver da sua música. No filme, me dediquei a criar uma representação positiva dessa personagens: mulheres negras da periferia, mulheres que trabalham com música, com cultura, com arte e cuja imagem, até então, havia sido constantemente construída como objeto de prazer do homem branco.

Qual não foi minha satisfação ao ver, depois do lançamento do filme, um monte de meninas assumindo sua negritude e estufando os cabelos e usando a flor que a Preta (personagem interpretada por Negra LI, usa em “Antônia”? A série baseada no filme foi exibida na Rede Globo e foi um sucesso de audiência.

Estou, portanto, no terreno simbólico, tratando de imaginário. Estou propondo uma observação das representações e de sua importância na consolidação das nossas opiniões.

Há anos, décadas, séculos, convivemos com representações que se impõem como verdade, atravessando nossa subjetividade. Há anos, convivemos com a imagem de negros associadas à criminalidade, de mulheres associadas ao sexo ou objeto sexual. A representação dos gays e trans, nem se fala! Os velhos não encontram representações positivas em lugar algum e os índios são invisíveis. Estas construções negativas vão se consolidando em símbolos de uma cultura atrasada, inadequada e absurdamente injusta, apesar de todos os esforços e melhorias das condições de vida da maioria da população brasileira, que aconteceu nos últimos anos. As medidas inclusivas, muitas vezes, recebem forte oposição de setores da sociedade e da grande mídia a ela associada, além de reações virulentas e violentas nas redes sociais. Esta cultura produz índices horrorosos que ainda não conseguimos transformar. No que concerne às mulheres:

. a maioria dos brasileiros acredita que “o estupro é culpa da mulher” (fonte: Ipea 2013)

. 26% concordam : “mulheres que usam roupas curtas merecem ser estupradas” (fonte: Ipea 2014)

. a violência doméstica atinge 2 milhões de brasileiras por ano (fonte: AVON/Ipsos)

. o Brasil é o 5º país no mundo onde mais se mata mulheres (fonte: Ipea 2015)

. embora sejamos a maioria da população, apenas 10% do Congresso brasileiro é composto por mulheres (fonte: Agência Nacional)

Os dados são vergonhosos.

No entanto, está acontecendo uma mudança de cenário, ou melhor, de protagonismo: ações, produções e manifestações recentes, criadas e organizadas por mulheres de todas as partes do país, e de todas as camadas sociais, afirmam a soberania sobre nosso corpo e consciência, disputam espaço e estabelecem direitos, criando novas e melhores representações. Dezenas de movimentos em defesa da vida e dos direitos humanos são compostos majoritariamente por mulheres.

Estes são os sinais de que a sociedade está construindo novo protagonismo. Os valores estão em plena transformação e, apesar do conservadorismo  – que sempre existiu e que agora arregaça suas mangas abertamente – estamos andando para frente.

A cultura e a arte estão no centro da disputa simbólica que acontece hoje no Brasil.

A mulher está no centro deste protagonismo.

Ano passado, dois exemplos de novas representação ganharam potência: Jessica, personagem do filme “Que horas ela volta?” de Anna Muylaert e Maria da Vila Matilde.

Jessica é a filha da empregada que, vinda do nordeste do país para ficar com a mãe enquanto presta exame para entrar na faculdade, empregada doméstica, não aceita dormir no quarto de empregada.  Afinal, sua condição não é hereditária. Jessica é a primeira geração de sua família a entrar na universidade. O filme da Anna é um sucesso de público e crítica. Ganhou dezenas de prêmios internacionais e foi distribuído em mais de 30 países.

Elza Soares, considerada pela BBC como a cantora do milênio, surpreendeu a todos ao lançar o álbum “A Mulher do Fim do Mundo”. São composições originais da maior qualidade que tratam de violência contra mulher, sexo, negritude, tristeza. E trás “um samba sujo com rock”, como bem definiu a escritora Maria Rita em seu texto para a Revista Capitolina, chamado “Maria da Vila Matilde”.

“Cadê meu celular?

Eu vou ligar pro 180

Vou entregar teu nome e explicar meu endereço

Aqui você não entra mais, eu digo que não te conheço

Cê vai se arrepender de levantar a mão para mim.”

Elza, não deixa dúvidas: Amélia ainda pode assombrar homens e mulheres. Mas o agora é o tempo da Maria da Vila Matilde.

Este é um vídeo que conheci através da Maria Altberg. Trata-se de um grupo de teatro em Cidade de Deus, Rio de Janeiro. Estas meninas, ao contrário das meninas de outro tempo, parecem não ter dúvidas. Não é a Amélia! Não é a Xuxa! Não são as estrelas brancas, loiras de Hollywood e seus happy ends. Elas mesmas é que são as mulheres de verdade!

 

* Tata Amaral é cineasta.
Pesquisa: Mari Palumbo