O ethos da Polícia é masculino: sobre mulheres e desmilitarização

#AgoraÉQueSãoElas

Por Jéssica Oliveira de Almeida*

Há 19 anos prestei concurso para Delegado de Polícia do Estado do Rio de Janeiro, sob protestos de grande parte de minha família. É uma profissão muito perigosa, não é ambiente para você. Quem? Eu, uma mulher de 25 anos, classe média, nascida na cidade de Niterói (portanto, bem provinciana) em “um lugar de homem”?

Assim, comecei a trabalhar na Delegacia de Neves, no Município de São Gonçalo. Éramos poucas mulheres, essencialmente em funções administrativas, e os banheiros eram mistos. Não havia banheiro feminino na DP onde eu passava à noite, responsável pela Central de Flagrantes de uma área compreendendo 5 (cinco) delegacias. Em razão disso, a equipe de plantão logo me alertou que eu deveria tomar banho de chinelo. Um policial do plantão me disse:

– Sabe como é homem, né Doutora? Faz xixi no box.

No plantão seguinte, além dos meus inúmeros códigos, objetos de higiene pessoal, uma máquina de escrever, acrescentei um par de chinelos ao meu kit.

Apesar de perceber que os policiais homens se preocupavam todo o tempo em me proteger, como se a condição de mulher me tornasse mais frágil, nas madrugadas, com a Delegacia lotada e o caos instalado, homens ou mulheres,  éramos todos policiais.

Sim, o ethos da Polícia é masculino. A ideia de polícia está associada à ideia de força. E força, para a sociedade brasileira, é a física – coisa de macho! Por isso, nós mulheres, ainda somos apenas 30%  do efetivo da Polícia Civil. Na Polícia Militar, mulheres representam apenas 7,2% – será que o modelo militarizado dificulta a entrada de mulheres? Não seria esse um dos bons motivos para discutirmos a possibilidade de desmilitarização das polícias?

Hoje, muitas mulheres vêm procurando as forças de segurança. Estive na Direção da Academia de Polícia Civil do Rio de Janeiro nos últimos cinco anos e coordenei concursos públicos para provimento de diversos cargos policiais: Delegado de Polícia, Inspetor de Polícia, Perito Criminal e Legista, entre outros. Pude identificar o número cada vez maior de mulheres ingressando em nossos quadros. As mulheres vieram para ficar nas instituições policiais e, por isso, precisam ser ativas em construir seu espaço de expressão, respeito e tomada de decisões. Será que, se tivéssemos números equivalentes de homens e mulheres nas instituições policiais, não teríamos uma imagem diferente das nossa polícia como um todo?

A formação policial, ainda marcada por um paradigma militarista (o que, de certa forma, pode ter contribuído para o “estranhamento” das mulheres pela função policial), começa a ser remodelada e marcada por um paradigma prevencionista, pautado na estratégia de polícia comunitária. O foco no inimigo vem sendo substituído pelo olhar no cidadão, mudança para a qual as mulheres policiais têm muito a contribuir.

Para fortalecer o trabalho das mulheres dentro das instituições policiais, precisamos que a discussão sobre segurança pública deixe de ser ‘assunto de homem’. A construção de uma sociedade que contemple as características e necessidades das mulheres, sejam policiais ou não, depende de uma postura mais ativa de todas. O debate sobre as instituições policiais no Brasil é urgente para todas. A plataforma Mudamos está atualmente discutindo o assunto e a participação das mulheres não ultrapassa os 20%. Não estamos preocupadas com o rumo da segurança?

Fica o convite para que todas se posicionem em www.mudamos.org.

*Jéssica Oliveira de Almeida, Delegada de Polícia Civil do Estado do Rio de Janeiro