Politicamente correto à brasileira
Por Maria Clara Drummond*
Certa vez um amigo me disse, meio brincando, meio falando sério, que a profissão do futuro será Analista de PC – Politicamente Correto: alguém contratado pelas empresas para se certificar que não há casos de machismo, racismo e homofobia. Seria um ganho de uma militância liberal que atua dentro do capitalismo.
A militância segue a risca aquele velho ditado: água mole em pedra dura tanto bate até que fura. Por conta de sua insistência, é senso comum hoje que não é mais ok chamar negro de macaco, mulher de vagabunda, gays de viados. Porém, esta última militância, ao invés de proibir com rigidez dogmática, conseguiu ressignificar os termos antes ofensivos. Não à toa conseguiram tantas conquistas e simpatizantes apoiando a causa. Gosto dessa última estratégia e acredito ser mais eficaz. Conquistar cada vez mais aliados, mesmo que não se enquadrem em minorias oprimidas, ao invés de inibí-los a qualquer falha cometida.
No ensaio “Feminista Ruim”, de Roxane Gay, publicado no Brasil pela Serrote #20, a autora desabafa: “O feminismo essencial sugere raiva, falta de senso de humor, princípios irredutíveis e estabelece um conjunto de regras para ser uma boa mulher feminista ou, pelo menos, uma boa mulher feminista branca e heterossexual, que odeie pornografia, que não satisfaça o olhar masculino, odeie homens, odeie sexo, foque na carreira. Tudo isso não chega perto de ser uma boa descrição do feminismo, mas o movimento tem sido há tanto tempo distorcido por falsas percepções que até quem deveria ser mais consciente acabou acreditando nessa imagem essencial do feminismo”. Nesse ensaio, ela fala da importância de sermos feministas imperfeitas. Faz sentido. Só assumindo nossas próprias imperfeições que podemos ter empatia com as imperfeições do outro.
Roxane Gay faz parte da cultura norte-americana, que é moralista e e cheia de aspectos muito próprios e diferentes dos nossos. Por aqui, o vocabulário que temos visto com mais frequencia nos últimos anos é o da evitação, do não-contato, do puritanismo e da culpa tão características dos Estados Unidos, e que vem se introduzindo gradualmente no Brasil. É preciso buscar um feminismo com identidade própria, menos vitimista e mais empoderador, brasileiro & tropical, que não negue nossa sensualidade intrínseca, porém sem se curvar à objeticação que o patricarcado nos impõe. Será que não estamos fazendo uma apropriação acrítica de um modelo puritano que não nos pertence?
Para que uma resposta minimamente satisfatória nesta busca por um feminismo tropical seja encontrada, é preciso pensar, com cuidado e estudo, algumas questões como: será que é interessante para a mulher que se coloque o corpo feminino como intocável e como tabu? Será que essa necessidade excessiva de permissão do toque não é uma infantilização da sexualidade feminina? Quando colocamos que tudo é “cultura do estupro” não estamos justamente banalizando uma violência tão terrível, jogando estupro, abuso e falta-de-noção-de-um-cara-babaca no mesmo saco?
A relação entre feminismo e sexualidade é complexa, e os limites entre assédio, manipulação e jogo de paquera podem ser tênues. Nos Estados Unidos, há uma proposta para mudar o ótimo slogan “No Means No” para sua versão afirmativa, “Only Yes Means Yes”. Dessa forma, o consentimento só aconteceria quando a mulher diz explicitamente SIM. Isso me parece uma burocratização de uma relação que é calcada no mistério e na incerteza do desejo do outro, e contrário à própria natureza do flerte. Ao mesmo tempo que temo importarmos esse tipo de pensamento, sinto que é delicado questionar iniciativas feministas quando a maioria dos homens no Brasil ainda se sente no direito de puxar com força o braço da mulher na balada. Mas deveria existir uma maneira de sermos feministas sem sucumbirmos ao puritanismo.
“Cultura do estupro” é um termo que nasceu da própria militância. Não deixa de ser interessante um conceito criado de modo coletivo e horizontal – duas características bem próprias da esquerda (talvez utópicas?). Porém, sua definição não é fechada, 100% clara, é amplo o suficiente ao ponto que uma música sexista de hip hop ou funk pode ser considerada parte da cultura do estupro. Mesmo termos e conceitos mais sólidos, na internet de hoje, dão margem para um certo “autoritarismo do bem”. Por isso, a importância de nos reconhecermos todos nós como as tais “feministas ruins”, cheias de falhas e contradições, afinal, “autoritarismo do bem” ainda é autoritarismo, e, não, nunca é “do bem”.
* Maria Clara Drummond é jornalista e escritora. Autora dos romances “A Festa É Minha e Eu Choro Se Quiser”ed. Guarda Chuva, e “A Realidade Deveria Ser Proibida”, ed. Companhia das Letras.