Um chamado para a Marcha das Mulheres Negras!
por Tainá Kapaz*
No próximo domingo, dia 30, as mulheres negras irão marchar. Nossos passos estarão juntos em Copacabana. É claro que há um desejo imenso de que façamos uma Marcha potente, enorme. Mas, a bem da verdade, é fundamental que tenhamos a clareza da quantidade de significantes que uma marcha negra num bairro da zona sul carioca nos traz.
Importante vislumbrar aqui a dimensão da cidade, e a condição da mulher negra nos territórios. Cabe ainda configurar a cidade como um campo de resistência, no sentido tácito de luta, pois é onde se dá a luta de classes e onde acontecem os conflitos raciais. Nesse cenário, as negras, que historicamente vivenciam o espaço público – seja por contingências diretas de nossa então condição de escravas, seja pela infinda pós-abolição -, ocuparão um território em disputa, tradicionalmente seleto a um grupo majoritariamente branco.
Analisando os mapas raciais da zona sul¹, conseguimos “desenhar” as estruturas racializadas da cidade. Nesse sentido, a Marcha se consolida como um grande chamado à reflexão das imposições que o racismo estrutural estabelece sobre a população negra, sobretudo às mulheres negras. Discutir o “direito à cidade” lefebvreano portanto já não faz sentido sem refletirmos sobre os efeitos da desigualdade racial e social presente na distribuição espacial dos indivíduos.
Para além da iniciativa de redistribuição de raças no tecido urbano que a Marcha propõe no campo simbólico, é importante refletir sobre o reagrupamento das mulheres negras. Quilombolas, mulheres periféricas, mulheres da região do Vale do Café, da Serra, da Região dos Lagos, das favelas do Rio de Janeiro… Como não pensar o espraiamento das mulheres negras no território do Estado, atrelado à uma reflexão sobre a pós-abolição e à uma cartografia diaspórica, que nos dispersa e que nos redefiniu como povo?
Contudo, é inevitável não se perceber a tecitura de uma rede negra de mulheres no cotidiano urbano. As vozes espaçadas das maiorias silenciadas citadas por Lélia Gonzalez reforçam o coro decolonial e rompem barreiras antes estruturais. Se antes a democracia racial era apenas uma alegoria branca, o movimento das mulheres negras é um anúncio hoje de que “(…)a única democracia possível é aquela que continua os processos de abolição da história, em oposição à escravidão, ao linchamento e à segregação(…)”², resistindo a todos os ataques, recrudescimento e negação de direitos. Num contexto onde 66% da violência doméstica ocorre entre nós, mulheres negras, e recebe-se em média 40% a menos do salário de um homem branco³, é preciso reagir à esta realidade que nos marca socialmente.
Recentemente em visita à Salvador, Ângela Davis nos relembrou que basta uma mulher negra se movimentar na pirâmide social para toda a sociedade se movimentar com ela, uma vez que as mulheres negras estão na base da pirâmide. Seria então o resgate da lógica de nossas matrizes sociais, de vivência comunal e do Bem Viver, onde uma puxa a outra, a resposta para a desestruturação de toda a pirâmide? Onde nos levarão nossas experimentações em teia, nossas redes de afeto e confiança? A saída para desestruturar a branquidade talvez passe pela nossa força de aquilombamento e de resistência.
Por isso, é fundamental que no domingo estejamos juntas, numa Marcha que ecoe nossas potências, onde colocaremos nossas coroas e ojás (salve as mulheres de axé!) festejando nossa força, reverenciando nossa ancestralidade. E venham todas. Pretas, mestiças, brancas… Afinal a revolução será das mulheres, ou não será.
#vemjunto
#umasobeepuxaaoutra
Tainá Kapaz é arquiteta, urbanista e membra da #PartidA
Nota 1: os mapas raciais desenvolvidos por Hugo Barbosa de Gusmão mostram a predominância de brancos no território da zona sul carioca, com exceção de suas favelas, territórios majoritariamente negros. Disponível em https://desigualdadesespaciais.wordpress.com/.
Nota 2: Trecho adaptado de Raça e Classe, escrito por Ângela Davis, em 1981.
Nota 3: Dados do Mapa de Violência da Faculdade Latino-Americana de Estudos Sociais em 2015 e da Pesquisa Mulher e Trabalho, realizada pelo IPEA, encontrada em: http://trabalho.gov.br/images/Documentos/Noticias/Mulher_e_trabalho_marco_2016.pdf
Referências bibliográficas
DAVIS, Angela. Mulheres, raça e classe. S.Paulo: Boitempo, 2016 [1981];
FAUSTINO, Deivison Mendes. “Por que Fanon? Por que agora?” : Frantz Fanon e os fanonismos no Brasil / Deivison Mendes Faustino. — São Carlos : UFSCar, 2015. ;
MBEMBE, Achille, Crítica da razão negra. Lisboa: Antígona, 2014;
LEFEBVRE, Henri. O direito à cidade. 5ª edição. São Paulo: Centauro editora, 2008;
GONZALEZ, Lélia. Mulher Negra. Afrodiáspora, Rio de Janeiro: IPEAFRO, v.3, n.6/7, 1985, p. 94-104, abr./dez.
Palestra de Ângela Davis em Salvador, em 25 de julho de 2017. “Atravessando o tempo e construindo o futuro da luta contra o racismo”, gravação TVE Bahia.
https://www.youtube.com/watch?v=2vYZ4IJtgD0