Feminismo: direitos autorais de uma prática linda e preta

#AgoraÉQueSãoElas

Por Giovana Xavier*

Uma mentira repetida mil vezes vira verdade.
(provérbio Akan)

 

bell hooks nos EUA. Conceição Evaristo no Brasil. Djaimilia Pereira em Portugal. Autoras que com suas obras colocam em primeiro plano o poder curativo que a escrita desempenha na vida de Mulheres Negras. Afetada por esse poder, a convite de Antonia Pellegrino, continuo o papo, apresentando o fio de minha trama: se a palavra feminismo é branca e ocidental, a prática feminista é Negra e Diaspórica. Tal fio nos coloca diante da urgência de conversar sobre sentidos mais justos e profundos de feminismo.

Nesse diálogo, que também se refere a protagonismo, capacidade de escuta e lugar de fala, façamo-nos as perguntas: Que histórias não são contadas? Quem, no Brasil e no mundo, são as pioneiras na autoria de projetos e na condução de experiências em nome da igualdade e da liberdade? De quem é a voz que foi reprimida para que a história única do feminismo virasse verdade? Na partilha desigual do nome e do como, os direitos autorais ficam com as Mulheres Negras, as grandes pioneiras na autoria de práticas feministas, desde antes da travessia do Atlântico. Como herdeiras desse patrimônio ancestral, temos em mãos o compromisso de conferir visibilidade às histórias de glória e criatividade que carregamos. Esse turning point nas nossas narrativas relaciona-se com a principal pauta do feminismo negro: o ato de restituir humanidades negadas.

Narrar na primeira pessoa as nossas histórias de beleza, força e sucesso é parte dessa restituição, pois produzir nossos próprios saberes a partir de quem somos e do que sonhamos representa revidar com a poderosa arma da beleza, o anonimato, a pobreza, o preterimento e os alarmantes indicadores sociais como a história única pela qual somos vistas e narradas. Significa a aposta em um projeto de humanidade negra comprometido em conferir visibilidade a trajetórias que nos fazem enxergar a diversidade que nos constitui. As potências que carregamos, multiplicamos e que estão ausentes dos grandes meios de comunicação. 

Dada a história de preterimento dos espaços de poder — em especial os ligados à cultura escrita—, priorizar o como alimentamos práticas feministas de liberdade relaciona-se com valorizar a ação, o cuidado e o movimento como elementos que definem o que é ser uma Intelectual Negra. Historicamente à margem da academia, da política institucional, da grande mídia e de outros espaços de poder, nossa intelectualidade constrói-se através da percepção – em diversos níveis – de que somos Mulheres Negras 24 horas por dia. Como chefas e arrimas de família. Na condição de primeiras a acessarem a universidade e obterem um diploma que se estende à toda família. No ato político de cuidar e educar filhos nossos e dos outros. Na valorização do estudo como instrumento de libertação. No trabalho em movimentos sociais e comunidades religiosas.

Todos esses protagonismos reverberam em um tipo de intelectualidade produzida a partir de saberes comuns, tecidos na interação entre Mulheres Negras de diferentes gerações. Até hoje quando estou em sala de aula como professora universitária, as imagens da vó Leonor, uma mulher semianalfabeta que segurou as minhas mãos para o traçado das primeiras letras no caderno de caligrafia, fazem-me lembrar por que sou quem sou. As emocionantes narrativas de estudantes que, após um semestre estudando a produção de Mulheres Negras, passaram a ver a si próprios, suas mães, avós, irmãs como intelectuais negras também são parte dessa jornada.

Essas histórias, carregadas de ancestralidade e beleza, ensinam-nos que interpretar vivências de Mulheres Negras exclusivamente a partir da dor e da denúncia das vulnerabilidades e prejuízos econômicos que nos afetam encobre a potência e a diversidade que nos constituem como sujeitas históricas. O catálogo “Intelectuais Negras Visíveis”, obra pioneira que apresenta o trabalho de 120 profissionais negras no Brasil e que será lançado no dia 29 de julho, na 15ª Flip, insere-se no projeto coletivo de restituição de humanidade. Se é tudo uma questão de ponto de vista, para mim, o Feminismo é e sempre será uma prática Linda e Preta.

“Você pode substituir Mulheres Negras como objeto de estudo por Mulheres Negras contando a sua própria história.”

 


*Giovana Xavier é professora da UFRJ, coordenadora do Grupo Intelectuais Negras, blogueira do Preta ‘Dotora’.