Sobre a recusa do lugar de vítima
Por Carla Rodrigues*
O tema do assédio sexual nunca foi apenas um entre outros dentro dos movimentos feministas. É por ser uma questão histórica que se pode ver hoje intensa campanhas contra a prática (não é não, nem uma a menos, carnaval sem assédio, chega de fiu-fiu, mexeu com uma mexeu com todas) e também se pode constatar inúmeras iniciativas institucionais que buscaram, nas últimas décadas, tipificar o que é assédio sexual e moral, definir regras e punições para as prática (como exemplo, cito o documento do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da UFRJ). O objetivo é transformar nas relações sociais aquilo que os feminismos vêm defendendo na vida política: o fim da hierarquia de gênero, baseada em pelo menos duas suposições ainda não completamente eliminadas. A primeira, a de que existe algum tipo de superioridade dos homens sobre as mulheres; a segunda, a de que essa suposta superioridade justifica a posse da mulher pelo homem, como se nossos corpos fossem por princípio disponíveis à satisfação da sexualidade masculina.
O assédio não é um tema entre outros dentro dos feminismos porque mobiliza pelo menos uma questão controversa para os movimentos: a vitimização das mulheres. Quando esteve no Brasil, em 2015, a filósofa norte-americana Judith Butler surpreendeu a platéia ao afirmar que duvidava da eficácia de se valer de vulnerabilidades para reivindicar políticas de reconhecimento, numa palestra cujo título já dava o tom da provocação: “Repensando vulnerabilidades e resistências”. Doze anos antes, em 2003, outra filósofa, a francesa Elisabeth Badinter, publicava “Fausse route: – Réflexions sur 30 années de féminisme”, no qual discutia problema muito semelhante (o livro foi traduzido no Brasil por “Rumo equivocado: o feminismo e alguns destinos”, pela Civilização Brasileira em 2005). O desvio de rota a que ela se refere na sua avaliação de 30 anos de feminismo diz respeito à estratégia de nos tornar vítimas para reivindicar proteção, o que só serviria para manter as mulheres como cidadãs de segunda classe, inferiorizadas ou infantilizadas, o oposto do que havia pretendido a segunda onda feminista, marcada pela conquista da emancipação e do lugar de sujeito de direitos, ambos negados pela modernidade.
As crescentes denúncias de assédio sexual mostram que, cada uma a seu modo, Butler e Badinter têm razão. Denunciar esse tipo de crime é, muitas vezes, se defrontar com a complexa ambigüidade do lugar de vítima. Por um lado, ao afirmar-se vítima de um assédio sexual, a mulher está dizendo que não aceita continuar sendo tratada como um mero corpo à disposição da sexualidade masculina, tomada na cultura como incontrolável. Assim como acontece no estupro, no assédio sexual há implícita uma suposição de que a mulher participou, contribuiu, se ofereceu ao desejo masculino de alguma forma, mais ou menos explícita, que teria levado ao abuso e ao descontrole.
Ao mesmo tempo, para denunciar o assédio sexual, é preciso se colocar no lugar de vítima, daquela que é alvo de um crime, e que portanto precisa recorrer à lei para se defender. A mulher só pode fazer isso, portanto, saindo da posição de mero corpo natural à mercê do desejo sexual do homem, esse suposto “sem-lei”, para apresentar sua reivindicação de direito “diante da lei”. Como completar esse movimento, se a própria lei também é, ela mesma, objeto de discriminação contra as mulheres, parece ser a questão que faz com que o assédio sexual seja um tema tão central para os movimentos feministas.
Por tudo isso, cada denúncia de assédio sexual opera pelo menos dois objetivos – coibir o assédio em si e reafirmar às mulheres o direito à lei – e um problema, o de ter que ocupar um lugar muito específico dentro do ordenamento jurídico, político e social, aquele reservado às vítimas que não têm direito à lei, na suposição de que existem vítimas que são responsáveis pelos crimes que sofrem (são as narrativas da bala perdida, da criança confundida com marginal, do jovem negro tomado por traficante etc). Para uma mulher, recusar o lugar de vítima é parte, portanto, desse duplo trabalho, é se negar, de forma legítima, a passar por uma segunda violência, que é a do processo jurídico em um sistema que não prevê a proteção da mulher, mas apenas reitera a sua suposta culpa pelo crime que sofreu.
É preciso reconhecer que os movimentos feministas conquistaram, nos últimos anos, inúmeras formas de corrigir essa distorção, como a criação de delegacias especiais para mulheres; a Lei Maria da Penha contra a violência doméstica; o agravante penal do feminicídio para assassinatos de mulheres perpetrados por maridos, companheiros, namorados ou ex-parceiros. Nenhum desses mecanismos, no entanto, é suficiente para enfrentar o paradoxo que se impõe a uma mulher vítima de assédio.
Levar adiante um processo jurídico é ficar diante de uma lei que até agora ainda não escrita para protegê-la, mas apenas para reiteradamente fazer dela tão somente uma vítima. Não levar adiante o processo jurídico seria enfraquecer a causa feminista, que precisa de mais mulheres denunciando e reivindicando o assédio sexual.
A escolha diante desse dilema insuperável é uma tarefa dolorida.
Que seja escolha de cada mulher, a cada vez. Será já uma grande vitória.
*Carla Rodrigues é professora de Ética do Departamento de Filosofia da UFRJ, mestre e doutora em Filosofia (PUC-Rio). É coordenadora do laboratório de pesquisa Escritas – filosofia, gênero e psicanális