O feminismo na Veja? “Precisamos falar dos feminismos em absolutamente todos os lugares”
Por Juliana Borges*
Precisamos falar.
Três em cada cinco mulheres jovens já sofreram alguma violência no relacionamento. 50,3% dos assassinatos de mulheres registrados em 2013 foram cometidos por familiares. 89% das vítimas de violência sexual no Brasil são mulheres, sendo que 70% dos estupros são cometidos por parentes, conhecidos e namorados. Em 2016, de acordo com o Fórum de Segurança Pública, ⅔ dos brasileiros foram testemunha de um episódio de violência física ou simbólica contra mulher em 2016. Em cada cinco mulheres, uma relatou já ter sofrido algum tipo de violência de algum homem, seja ele conhecido ou desconhecido. Cerca de 30% dos homens acham que uma mulher que sai de roupa curta está pedindo para ser assediada ou abrindo brecha para violência. 64,3% dos parceiros de adolescentes grávidas são maiores de 21 anos, sendo que muitos tem até mais de 30 anos. O Brasil está em 4º lugar no ranking mundial de casamento infantil. O Brasil é o país que mais mata travestis e transexuais no mundo. O Brasil está entre os 10 destinos mais perigosos para uma mulher viajar sozinha. 54% das pessoas conhecem uma mulher que já foi agredida por um parceiro. 56% das pessoas conhecem um homem que já agrediu uma mulher. 69% das pessoas acreditam que a violência contra a mulher não ocorre apenas em famílias pobres. Estes são dados, em grande parte, do Mapa da Violência de 2013.
Faltam evidências? Acho que não. Precisamos é falar.
Definitivamente, precisamos falar. Temos uma crença de que somos um povo cordial. Um país de paz e de um povo amistoso. Os números acima são uma das facetas que contradizem este senso comum. Vivemos em um país que passou por um processo de colonização, e não há colonialismo sem violência. As bases de nossa existência ocidental, nas Américas, se constituem num devastado cenário de extermínio indígena e negro, grilagem, estupros, invasões e todos os tipos de brutalidade.. Precisamos falar sobre isso.
Um dado importante do Mapa da Violência é sobre o entendimento de grande parte das pessoas de que a violência contra a mulher não ocorre apenas em famílias pobres. A socióloga e intelectual Heleieth Saffioti, em seus estudos sobre gênero e violência, já apontava que a violência contra a mulher ocorre em todas as classes sociais e em todos os espaços. É preciso superar o estigma de que a pobreza é um elemento que induz e tem, por si, como consequência, a violência. Su Tonani nos prova que não.
Há, inclusive, a tese de Tânia Rocha Andrade e Cunha, chamada “O preço do silêncio”, em que ela desnuda as sutilezas e o apagamento da violência contra mulheres de classes média e alta, enredadas em uma teia de “danos psíquicos e distúrbios sexuais” pelo “abuso sexual via sedução” e pelo pacto de silêncio, sob o argumento de vergonha e exposição públicas, que famílias abastadas estabelecem diante de violências. Meninas pobres, por outro lado, passam por processos mais brutalizados e expostos, mas que muitas vezes não conseguem estimular compadecimento de quem poderia ajudá-las a romper com o ciclo de violência em que vivem. Precisamos falar.
Nomear e falar são atos importantes em nossa sociedade. Platão falava sobre a importância de nomear e dizer, conferindo o sentido de dar existência. Um importante sociólogo, Pierre Bourdieu, afirmava que língua e linguagem são importantes instrumentos simbólicos. Portanto, nomear, pelo ato da fala, é também dar sentido. Linguagem e língua precisam de um sujeito de ação para dar sentido ao que se fala e se nomeia. A advogada e feminista negra Kimberlé Crenshaw afirma que não nomear não nos permite ver problemas sociais e como estes impactam na vida de membros de um grupo-alvo. Já a filósofa e feminista negra Djamila Ribeiro aponta a importância de romper com os silêncios. Falar, portanto, seria um ato necessário para superarmos silêncios institucionais que naturalizam violência.
Nesse sentido, urge falar de gênero em todos os espaços, lugares. Aproveitar todas as oportunidades. Os feminismos demonstram a pluralidade de vozes que, em comum, têm o desejo e a luta por igualdade entre todos, todas e todes. Isto significa defender que todos, todas e todes têm de romper silêncios. É um equívoco acreditar que não falar sobre algo para este ou aquele veículo nos ajudará.
Fingir que alguma coisa não existe e torcer para que ela desaparecera é o que nos trouxe até aqui. A invisibilização seguirá sendo praxe se não mudarmos. Precisamos, urgentemente, falar.
Sendo o machismo e o sexismo opressões estruturais e estruturantes, ou seja, que perpassam todas as relações sociais e todas as esferas de nossas vidas, falar sobre feminismos é uma emergência. Nossa luta deve ocupar todos os espaços.
O feminismo interseccional entende que a opressão têm impactos diferenciados nas experiência de cada mulheres. Por exemplo, os dados os quais abrimos este texto são mais alarmantes se incluirmos o elemento racial. Enquanto o feminicídio diminuiu, em 9,8%, entre mulheres brancas, aumentou em 54% entre mulheres negras nos últimos 10 anos. Fica comprovado que, em diferentes espaços, dinâmicas e com diferentes efeitos e consequências, mulheres sofrem algum tipo de opressão e violência. É preciso uma defesa de nós mesmas, de nossas múltiplas experiências e da necessidade de que alcancemos todos e todas. E precisamos falar sobre isso também.
Aqui, cabe ressaltar o conceito de “lugar de fala” muitas vezes confundido pela perspectiva individual do falante. Quando, na verdade, trata-se da perspectiva de um grupo social a partir de experiências historicamente compartilhadas e que produzem ação e conhecimento que devem ter tanta autoridade discursiva quanto o conhecimento produzido por qualquer outro grupo social, segundo a formulação da intelectual e socióloga afro-americana Patricia Hill Collins. Ou seja, o “lugar de fala” das mulheres, tão diverso e heterogêneo, é aquele que, em diferentes graus, nos permite nos conectar em nossa diversidade. Nós vivemos sob uma sociedade machista e patriarcal. Sendo assim, em distintos níveis de opressão. E precisamos falar sobre isso.
A pluralidade é um elemento constitutivo dos feminismos. Com isso, é preciso pluralizar e multiplicar todas as vozes. Amplificar nossas demandas. Utilizando o ato de nomear e de falar como potências plurais e que conferem sentido e existência às opressões, oportunizando que apontemos questionamentos e construamos reflexões e saídas neste cenário de violência e opressão.
Infelizmente, tendemos a homogeneizar e universalizar comportamento. Os feminismos nadam contra esta maré. Isto significa que nos feminismos não há espaço para verdades totalizantes, mas heterogeneidades e multiplicidades.
Diversidade é potência transformadora. Feminismos são plurais. Disso advém, seu impacto. Em todos os espaços, lugares e oportunidades: devemos falar. De nós.
Até quando vão achar que não se deve falar dos feminismos em todos os lugares? Todos, sem exceção. Ocuparemos todos os espaços. E teremos mais potência de transformação.
* Juliana Borges é feminista negra. Pesquisadora em Antropologia na Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo, onde cursa Sociologia e Política. Foi Secretária Adjunta de Políticas para as Mulheres da Prefeitura de São Paulo (2013).