#PrecisamosFalarSobreAborto
28 de setembro é o dia de luta pela descriminalização do aborto na América Latina e Caribe. Precisamos urgentemente ampliar e aprofundar o debate sobre o tema e, para isso, há uma virada feminista: as 24 horas deste dia 28/09 serão dedicadas ao debate sobre a questão do aborto enquanto direito sexual e reprodutivo das mulheres!
Na luta por avanços nesta agenda, por muitos direitos a mais e nenhum a menos, o #AgoraÉQueSãoElas se soma ao esforço coletivo das feminitas para, no dia de hoje, falar de aborto. Sim, precisamos falar de aborto.
O Estupro, o aborto e a lei
*Por Ana Teresa Derraik
Luiza tem 19 anos. Foi a uma festa com os amigos da faculdade. Assim que chegou conheceu Bruno, alto, bonito, forte e cheio de atitude. Dançaram, beberam e ficaram. Saíram da festa juntos. Foram direto para um motel. A coisa ficou quente. Bruno mais afoito. Luiza não estava mais tão à vontade como antes. Beijos e mordidas e pau e línguas. Luiza abriu a camisinha. Tentou colocar em Bruno. Foi interrompida com truculência. Ficou assustada. Quis ir embora. Bruno a impediu. Segurou seus braços, tampou sua boca e a derrubou. Luiza resistiu, chegou quase a escapar, mas foi imobilizada. O cheiro do sêmen misturado ao sangue a fez vomitar. Ela não contou para ninguém. Luiza e Bruno estudam na mesma faculdade. A lembrança embota o olho. Um misto de vergonha e raiva e tristeza. Duas semanas depois a menstruação não veio. Luiza estava grávida.
Maria tem 35 anos e 5 filhos. O mais velho tem 14 anos, a mais nova 3. Maria é casada de papel passado com Ednaldo. Maria sofre violência doméstica. Já tentou se separar diversas vezes, mas volta atrás. Ednaldo a ameaça, ameaça os filhos, bate, chora, pede desculpas. Maria fica com pena e com medo. Maria apanha, chora, perdoa. Ednaldo chegou tarde em casa. Maria já estava dormindo. Maria acordou com um tapa na cara, Ednaldo já estava arrancando sua calcinha, o soco na coxa para que abrisse as pernas veio em seguida. Maria não gritou, não correu, não resistiu, não queria acordar as crianças. Ednaldo não demorou a lambuzar tudo, corpo e cama. Duas semanas depois a menstruação não veio. Maria estava grávida.
S., 17 anos, é usuária de crack. Perdeu as contas de quantas vezes engravidou, aliás nunca contou. Nunca saiu com um filho da Maternidade. Não lembra de ter permitido relação sexual com qualquer pessoa. Não gosta do sexo. Gosta da pedra. J.S. acordou com ânus e vagina latejando e sangrando, cheiro de água sanitária no líquido que escorria. Duas semanas depois a menstruação não veio. J. S. estava grávida.
Luiza, Maria e J.S. podem contar com o apoio do Estado caso não queiram levar suas gestações adiante. O artigo 128 do Código Penal brasileiro garante esse direito: “Não se pune o aborto praticado por médico: se a gravidez resulta de estupro e o aborto é precedido de consentimento da gestante ou, quando incapaz, de seu representante legal.” O Boletim de Ocorrência Policial assim como laudo do Instituto Médico Legal são direitos da vítima que pode dispensá-los se assim for sua vontade. Servem para instauração de inquérito e prova criminal respectivamente. A exigência de apresentação desses documentos para atendimento nos serviços de saúde é incorreta e ilegal.
Caso procurassem serviço de atendimento à vítima de violência sexual no intuito de interromperem suas respectivas gestações, Luiza, Maria e J.S. percorreriam trâmite determinado pela Portaria MS/GM no. 1508, 1º de setembro de 2005, que reza sobre a “Justificação e Autorização da Interrupção da Gravidez”. O nome rebuscado nada mais é que um processo em quatro etapas que ocorre concomitantemente a prestação da assistência no serviço de saúde estabelecido. Esse processo gera os seguintes documentos: “Termo de Relato Circunstanciado do Evento”, feito pela própria gestante na presença de dois profissionais de saúde; “Termo de Aprovação de Procedimento de Interrupção da Gravidez” com a assinatura de três integrantes da equipe de assistência multiprofissional; “Termo de Responsabilidade”, que traz advertência expressa sobre a previsão dos crimes de falsidade ideológica e de aborto, art. 299 e 124 do Código Penal, respectivamente, caso o “Relato Circunstanciado” contenha informações falsas; “Termo de Consentimento Livre e Esclarecido”, elaborado em linguagem acessível, abordando as informações quanto ao procedimento médico, a garantia ao sigilo e a declaração expressa sobre a decisão voluntária e consciente de interromper a gravidez.
O serviço de atendimento a vítima de violência sexual que contempla o aborto legal deve ter um fluxo bem estabelecido para que todas as etapas do “Procedimento de Justificação e Autorização” fluam de forma ágil e absolutamente integradas à assistência médica e psicossocial. A ambiência deve ser adequada à tensão do agravo tratado. Os profissionais que o compõem, sabidamente, não podem apresentar qualquer objeção de consciência que constranja ou retarde a execução das etapas da linha de cuidados. Esses serviços existem e estão disponíveis em todo território nacional.
Quantas mortes por aborto inseguro poderiam ser evitadas se luizas, marias e j.s.s fossem esclarecidas quanto aos seus direitos? Gravidez em consequência de estupro é passível de aborto legal promovido pelo Sistema Único de Saúde. A acolhida legal às gestações indesejadas ainda não tem a amplitude ideal, mas alguma acolhida já existe. Atentem! Assim reza a Lei.
* Ana Teresa Derraik é ginecologista e obstetra, diretora da Clínica do Hospital da Mulher Heloneida Studart, no Rio de Janeiro.