Precisamos falar do assédio!

#AgoraÉQueSãoElas

Por Paula Sacchetta*

Depois de termos visto as redes sociais serem inundadas com as hashtags #meuprimeiroassédio, #meuamigosecreto e #agoraéquesãoelas, no que uma amiga chamou de “Primavera Feminista”, ficamos com vontade, nós aqui da Mira Filmes, de produzir um documentário que registrasse essas histórias e, mais que isso, que as tirasse das redes e ocupasse os espaços da cidade com o tema.

Poderíamos chamar as mulheres para falar aqui mesmo, em uma sala fechada dentro da produtora. Mas decidimos fazer um estúdio móvel, uma van que circulasse por diferentes lugares para colher esses depoimentos pela cidade, sem pesquisa prévia, para que fosse também uma campanha: Precisamos falar do assédio. Qualquer mulher que chegasse, poderia contar sua história.

Assim, na Semana da Mulher, de 7 a 14 de março, paramos a van em nove lugares de São Paulo e Rio de Janeiro. Dentro dela, as mulheres ficavam sozinhas, sem qualquer tipo de entrevista ou interlocução. A idéia era que fosse um momento íntimo e de desabafo. Ela olhava para a câmera e começava a falar. Escolhemos a palavra assédio para que ela pudesse abarcar do mais simples fiu-fiu, que escutamos na rua todos os dias, até os casos das violências mais perversas. Valia como cada uma havia entendido o próprio caso.

Ficamos com uma questão: o que fazer com as que quisessem falar sem se identificar, sem mostrar o rosto? Sabemos que já existe a questão de culpabilização da mulher que sofre violência. Não queríamos borrar seus rostos como fazem com criminosos que aparecem na televisão. E precisávamos deixar claro: quais são os motivos que fazem as mulheres quererem falar sem se identificar?

Chamamos então uma artista para produzir máscaras que representassem alguns desses motivos: medo, raiva, vergonha e tristeza. As que quisessem poderiam usar uma das máscaras e ainda ter a voz distorcida. Se não, era só começar a falar quando a porta fechasse.

Quando colocamos a van na rua, não tínhamos idéia do que iria acontecer. Espalhamos notícias pela internet, rádio, televisão e jornais convidando as mulheres a falar. Ao fim dos sete dias havíamos coletado 140 depoimentos, que geraram mais de doze horas de material bruto.

As meninas chegavam de todas as formas: passavam pela van, ficavam curiosas, nos perguntavam o que era aquilo e decidiam entrar na fila para falar. Outras, vinham de longe decididas; haviam visto na televisão e precisavam contar a própria história. Algumas ainda perguntavam o que era aquilo, davam uma olhada dentro, iam embora e voltavam depois de horas para dar seu depoimento. Elas tinham até cinco minutos para falar, mas algumas falaram 16, ignorando o relógio que corria dentro da van.

Uma delas me disse que nenhuma das quatro máscaras representava o que ela sentia, que o sentimento dela era, na verdade, “uma mistura dolorida daqueles quatro”. Apaguei a luz e ela contou sua história no escuro, sem máscara e sem mostrar o rosto. Ali na hora eu não via nem ouvia nada. Mais tarde, quando assisti ao depoimento, entendi o motivo: ela havia sido abusada pelo próprio pai, dentro de casa.

Comecei a assistir a todos os depoimentos: “Eu era escrava da pancadaria”, começava uma. Olhei os formulários preenchidos: “Com quantos anos aconteceu seu caso de assédio?”. Resposta: “6 anos”.

Depois de um longo processo de edição, selecionamos 28 depoimentos e os transformamos em um filme de 80 minutos. Mas os 140 ficarão disponíveis na íntegra, sem cortes, em um site, que ainda contará com uma ferramenta de gravação de novos depoimentos. Qualquer mulher, de qualquer lugar do mundo, poderá gravar e enviar o seu relato.

Desde que cheguei a uma versão mais pronta do filme, comecei a mostrá-lo para algumas pessoas. Fico sofrendo durante os 80 minutos, me perguntando “por que estou fazendo as pessoas passarem por isso?”, “por que fazê-las escutar todas essas histórias terríveis de dor?”.

Depois que o filme termina, com todo mundo destruído, e as pessoas começam a falar, eu lembro porque o fizemos. Eu lembro porque precisamos falar do assédio.

Para além dessas sessões que chamamos de “cabine” – em que basicamente mostramos o filme para gente da área para palpitar –, fizemos uma só para as meninas que estão no filme. Eu achei que seria a mais difícil de todas e que, depois de se verem na tela, elas iriam querer ser tiradas do filme por vergonha, medo da exposição ou alguma coisa do tipo. Após a sessão, a primeira coisa que todas falaram, quase em coro, foi “obrigada”. Aquele tinha sido um primeiro passo para elas começarem a falar de suas dores. E assim, começamos a conversa que foi a mais difícil que tive até agora sobre o filme, mas também a mais bonita.

Uma delas disse que se sentia transparente, exposta. E que via através de todas as outras ali na sala também. Mas que se sentia abraçada. Que se sentia segura ao lado das outras e que queria abraçar todas as mulheres do mundo. A outra, ainda com lágrimas nos olhos depois de ver seu próprio caso de estupro na tela, disse que sempre havia pensado que a “a grama do vizinho era mais verde”, mas que ali viu que não era bem assim. Que havia histórias até piores que a sua. Completou dizendo que se sentia acolhida.

Três que haviam pedido para ter a voz distorcida, quiseram suas vozes normais de novo. Decidiram, depois de ver o filme e de se verem no filme, contar seus casos sem a voz alterada. A máscara bastava.

E aí lembrei, pela segunda vez, porque estou fazendo isso. Entendi o tamanho que ficamos quando estamos juntas. O poder que temos, juntas, de transformar o mundo em que vivemos. Entendi o sentido mais profundo da palavra acolhimento.

Ficou claro, de novo, que temos que falar, sim, cada vez mais, e aceitar cada vez menos. Um terço das 140 falou usando máscaras. É um numero grande, sim, mas a maioria falou mostrando o rosto. Sem medo ou vergonha.

Que o filme, as hashtags e nossos encontros reais façam a dor das marinas, adelaides, carolines, ericas, marianas, isabellas, brunas, natálias, lúcias, flávias e ágatas chegar a todas as mulheres e homens do mundo. Que nos faça caminhar para um lugar melhor, onde possamos andar na rua, trabalhar e frequentar espaços de família sem medo simplesmente por sermos mulheres.

Sim, precisamos falar do assédio, cada dia mais e mais livres, com mais liberdade, menos medo e sem máscaras.

*Paula Sacchetta é jornalista e documentarista. O documentário será lançado em setembro.