Gênero: ideologia ou teoria? Quem se opõe ao debate sobre gênero é quem se beneficia das coisas como elas são…

#AgoraÉQueSãoElas

Por Joanna Burigo*

Os estudos de gênero formam um campo bastante recente na história da produção científica de conhecimento. Deste modo é compreensível que ainda exista tanta desinformação a respeito desta episteme. Infelizmente, no entanto, os despautérios contidos nas falas de muita gente que se posiciona contra os estudos de gênero são muitos, e não tão compreensíveis assim. Um bom exemplo é a falaciosa (e assustadoramente recorrente) construção linguística que insiste em enquadrar estudos de gênero como “ideologia de gênero”.

O que é gênero? É difícil responder a esta pergunta de forma categórica, mas algumas respostas ajudam a elucidar os modos como estudiosas do tema se relacionam com ele. Gênero é, ao mesmo tempo, uma teoria crítica, as formas como organizamos a sociedade simbolicamente entre masculino e feminino, e um campo de estudos interdisciplinares cujas categorias centrais de análise são identidades, subjetividades e representações.

Opiniões contrárias à inclusão de informações sobre gênero na educação revelam um profundo desconhecimento sobre estes estudos. Como já dito, esta ignorância pode até ser compreensível, afinal a disciplina é recente e, como tudo o que chacoalha o status quo, ainda vista com certa desconfiança. Mas o obscurantismo com que se usa a palavra “ideologia” neste contexto não é fruto apenas de ignorância. É má-fé mesmo.

A Associação Escola Sem Partido vem propondo uma série de projetos de lei que preveem “neutralidade” de docentes diante de questões políticas, ideológicas e religiosas em sala de aula. Mas o que chamam de “inclusão da ideologia de gênero na educação” seria mais bem descrito como “inclusão de conhecimento de noções teóricas provenientes dos estudos sobre gênero na educação”. Teoria, não ideologia. Há diferenças entre um conceito e outro, e elas não são particularmente sutis…

Ideologias são sistemas de ideias e ideais que dão base a teorias e modelos políticos. Já teorias são os conjuntos dos princípios fundamentais de uma ciência. Tanto ideologias como teorias são sistemas de pensamento, mas uma das diferenças mais cruciais entre um e outro é metodológica: é esperado, da teoria, que ideologias sejam removidas de análises que pretendem examinar e explicar fenômenos de forma científica.

É certo que o apego ignorante a ideologias informa e atrapalha o desenvolvimento teórico. E isso acontece – mas, quando acontece, é ciência malfeita. Teoristas sérias e comprometidas com o método científico geralmente estão bem preparadas para o advento de terem suas ideologias abaladas por desenvolvimentos na teoria. É para isso, inclusive, que serve o rigor do método científico de pesquisa.

Quem se opõe à inclusão de questões de gênero na educação o faz por acreditar que ensinar tal teoria implicaria numa mudança do paradigma social vigente. A respeito disso, estas pessoas não estão 100% sem razão: de fato quem trabalha com gênero visa mudanças sociais significativas. Mas a mudança que propomos passa pela ampliação do alcance dos direitos humanos, para que todas as pessoas vivam bem, em paz, com justiça e equidade, independentemente de suas identidades de gênero. Isso é ideológico? Talvez – mas impedir que o debate aconteça também o é.

Propor que gênero seja debatido – e não somente na escola, mas na sociedade em geral – não é a mesma coisa que querer influenciar ou muito menos transformar a identidade das pessoas. As formas com que a sociedade trata questões de gênero, hoje, excluem identidades não normativas muito mais do que as acomodam. Por isso nosso objetivo é, sim, transformar a sociedade. Mas transformá-la para a inclusão, para que os que foram histórica e sistematicamente excluídos, por não se enquadrarem nas normas aceitas, deixem de sofrer violência por conta disso.

Não é difícil compreender que pensar em gênero como um conceito fluído e socialmente mutável não é a mesma coisa que esperar que todas as diferenças entre homens e mulheres sejam apagadas, tampouco propor uma sociedade hegemonicamente andrógina. Quem estuda e trabalha com questões gênero simplesmente propõe novas maneiras de pensar criticamente sobre nossas identidades, para que possamos exercer nossa cidadania de formas mais livres e menos opressoras. Isto é especialmente urgente para pessoas cuja existência não se encaixa nas normas rígidas e mutuamente exclusivas que a divisão ortodoxa entre masculino e feminino produz.

Se existe alguma “ideologia de gênero”, ela é a ideologia vigente no contexto sociocultural em que nos encontramos. Insistir que existem apenas dois gêneros aceitáveis e distintos, e que quaisquer desvios comportamentais desta ordem são perversões ou até mesmo patologias, isso sim é ideológico.

O que propomos é que se questione a rigidez do binário. A teoria de gênero não impõe uma erradicação dos conceitos “homem” e “mulher”, tampouco prega que corpos e biologia não importam, e muito menos instrui pessoas a serem o que elas não sentem ser. Pelo contrário, o que interrogamos é a intransigência da separação absoluta entre binários opostos, e o apego à manutenção desta ideologia verdadeiramente excludente.

Proponentes da Escola Sem Partido e conservadores opostos a inclusão do debate sobre gênero na educação convenientemente esquecem que o papel do docente é estimular o pensamento crítico e autônomo, justamente para que todas as pessoas tenham instrumentos para se emancipar de ideologias totalitaristas e autoritárias.

Todo mundo tem identidade, e gênero é um elemento fundamental para o entendimento que temos de nós mesmas e da sociedade. Visto que quem se opõe ao debate sobre gênero (alô Escola Sem Partido) tende a ser quem se beneficia das coisas como elas são, fica a pergunta: o apego ao binário rígido homem/mulher como únicas formas aceitáveis de viver em sociedade conserva o que para quem?

*Joanna Burigo é publicitária por formação, professora por vocação e feminista por (falta de) opção. Fundadora da Casa da Mãe Joanna, colunista do site da Carta Capital, e mestre em Gênero, Mídia e Cultura pela LSE.