Sobre mulheres, códigos e algoritmos: gênero nas plataformas digitais

#AgoraÉQueSãoElas

Por Daniela Silva*

Faça um exercício comigo: abra seu Facebook agora. Que tipo de conteúdo aparece pra você? Quais são os anúncios que a rede social mostra na sua timeline?

Na minha, aparece isso aqui:

Agora_Dani

A maioria dessas telas foi capturada na minha 5a semana de gravidez — logo depois de ver o resultado “positivo” no exame. Quando só eu, meu parceiro e minha irmã sabíamos do fato. As imagens são de propagandas, mas uma boa parte das publicações de amigos e amigas em destaque na minha timeline segue essa linha: textos sobre maternidade, fotos de bebês, imagens de grandes barrigas (inclusive de pessoas com quem eu não falo há anos).

Ao contrário de como foi com meu marido, familiares e colegas de trabalho, eu não tive a opção de escolher o momento de informar a “corporação Facebook” sobre a minha gravidez. Não existe a opção “mudar status para ‘grávida’” no cadastro da rede social. Eu até poderia tentar esconder, como fez a socióloga Janet Vertesi, mas a tarefa não seria simples. Se, de um dia para o outro, eu passei a receber essas propagandas e postagens, é porque — com base nos dados coletados durante as minhas interações e conversas na rede — fui automaticamente classificada em um determinado perfil. Um perfil de grávida.

Dai você pode me dizer: “isso é porque o Facebook está te mandando aquilo em que você tem mais interesse”.

Mas se o algoritmo — a lógica que determina que anúncios e publicações que o Facebook exibe, quando e para quem — é um segredo da empresa, como podemos afirmar que ele está apenas se guiando pelos meus interesses? Ou melhor: não deveria ser mais óbvio que não são os meus interesses, e sim os interesses do Facebook, bem como de outras plataformas digitais, que mediam aquilo que eu leio, e as oportunidades que me são oferecidas?

Diferente da capa de jornal (que, apesar de também ser editada de acordo com valores comerciais e políticos, é igual pra todo mundo), a “capa” do seu Facebook é feita especialmente pra você, e não por uma pessoa, mas por um algoritmo. Assim como os seus resultados de busca do Google, as suas ofertas de livros na Amazon. Tudo de acordo com o seu perfil. E isso às vezes acontece de forma tão sutil, que pode ser até perigosamente imperceptível.

Além do problema das bolhas de opinião pública (aquele efeito que torna difícil conhecer opiniões diferentes das suas, porque elas simplesmente não aparecem pra você na rede), eu me preocupo particularmente com o papel que as grandes corporações digitais estão assumindo de formatar nossas identidades e oportunidades de vida, de acordo com seus próprios critérios.

Exemplo simples de como isso acontece: um estudo demonstrou que mulheres que usam o Google para procurar emprego têm menos chance do que os homens de receberem, nos resultados das suas buscas, as vagas mais bem remuneradas. Ao ser questionado sobre esse desequilíbrio, adivinha em quem o Google colocou a culpa? Nas mulheres, que teoricamente teriam menos interesse em “clicar” nessas vagas.

Esse debate é recente (tão recente quanto a capacidade dessas empresas de coletar e analisar grandes massas de dados). Mas já há indícios de que uma sociedade de perfis decididos por meio de coleta massiva de dados, analisados por algoritmos tão pouco transparentes, pode acabar sendo catastrófica pras minorias. E especialmente cruel com as mulheres. Imagine então com meninas mais jovens, que estão formando sua personalidade em tempos de imersão em plataformas digitais.

No ano passado, o Programa de Informação da Open Society Foundations encomendou um estudo (ainda não publicado) do projeto eGirls, da Universidade de Ottawa. Depois de entrevistar dezenas de meninas e mulheres de 15 a 22 anos, as pesquisadoras do eGirls concluíram o seguinte: “quase todos os espaços online preferidos dessas jovens são estruturados em cima de uma prática de vigilância comercial contínua. A ideia não é apenas anunciar mais propagandas para pessoas jovens, mas também formatar suas identidades e torná-las mais suscetíveis às mensagens do marketing. As participantes do eGirls indicaram que a presença de anúncios de dieta, dicas de perda de peso e outras ‘dicas de beleza’, combinadas com conteúdos postados por modelos e lojas de roupas, limitam o tipo de garotas que elas poderiam ser quando estão online”.

A solução para esse problema não é simples, e as respostas devem vir do conjunto de desenvolvimentos de ações com abordagens dinstintas — desde a criação de “políticas editoriais” mais transparentes para plataformas digitais (pense no equivalente a um ombudsman para sua timeline), até o desenvolvimento de processos de auditoria externa para algoritmos. O que não basta é jogar a questão para a esfera individual. Proteger seus dados online é possível (e recomendável), mas não se trata apenas de limitar nossos compartilhamentos, cliques e curtidas, e sim de transformar este num debate político, econômico e social.

Não somos nós que temos que resolver sozinhas o problema de como o mundo nos lê. Não quando estamos sendo diretamente limitadas na nossa capacidade de ler o mundo. Precisamos pensar nisso. E falar sobre isso.

* Daniela Silva é criadora e (des)organizadora da RodAda Hacker. É Program Officer do Information Program da Open Society Foundations. E é mãe da Olívia.