TOLERÂNCIA
Por Maria Antônia Goulart*
Estamos diante de uma crise grave de saúde pública de escala mundial. O zika vírus e os casos de microcefalia trouxeram de novo ao debate a discussão sobre a interrupção da gravidez, com a proposta de ampliação das hipóteses legais que autorizam o aborto. É fundamental que haja um amplo esclarecimento para a população, em especial mulheres em idade reprodutiva e gestantes, dos riscos de microcefalia associados à gravidez, mas também precisamos discutir direitos reprodutivos e a questão da deficiência.
Como militante e ativista dos direitos humanos e pessoas com deficiência, além de mãe de uma menina de 5 anos com síndrome de Down, trago aqui minha contribuição a esse debate.
Entendo ser um direito de todas as mulheres, com ou sem o diagnóstico de ma-formação ou deficiência, a decisão se seguir com a gestação. A descriminalização do aborto precisa ser garantida em todos os casos como política de saúde pública diante do quadro de milhares de mulheres, em especial as mais pobres, que a cada ano morrem realizando esse procedimento de forma clandestina e precária.
Mas me preocupa que, diante deste momento de tamanha gravidade, acabemos por afirmar como um valor da nossa sociedade o reconhecimento da pessoa com deficiência como alguém incapaz de ter uma vida autônoma, independente, produtiva e feliz.
A legislação brasileira nega à mulher o direito de decidir pelo aborto, exceto em três casos por representarem valores especialmente caros a essa sociedade: gravidez fruto de estupro, evitando que a mãe crie um filho resultado de situação de extrema violência; quando sua vida está em risco; e no caso de feto anencéfalo.
Estabelecer uma previsão legal de aborto para os casos de diagnóstico fetal de microcefalia pode significar evitar o nascimento de pessoas com deficiência, muito mais do que defender os direitos reprodutivos das grávidas.
Por melhores que sejam as intenções de quem advoga nesse sentido, acaba-se por buscar uma sociedade menos diversa, mais homogênea e menos “imperfeita”. E aqui tomo a liberdade de citar uma situação pessoal vivida por mim e minha filha Beatriz. Ao agradecer à mãe de uma grande amiga dela sem deficiência por estimular e fortalecer a amizade das duas, ela me respondeu que eram visíveis os ganhos que Manu tinha com aquela amizade.
Me arrisco a dizer que, na convivência de pessoas com e sem deficiência, ganham todos, talvez até mais as pessoas sem deficiência, pois são chamadas a olhar muito além do seu campo de visão usual. Pessoas com deficiência não são um custo ou um ônus social. São parte fundamental de uma sociedade que tem a tolerância, respeito e colaboração como valores. São pessoas capazes de contribuir com a sua comunidade de forma ativa, construindo suas trajetórias com autonomia e independência. São muitos os casos que podemos citar, inclusive de pessoas com microcefalia, que estudam, trabalham, estabelecem relacionamento afetivo e vivem sozinhos.
Como os casos de microcefalia neste momento, muitos outros diagnósticos podem gerar o mesmo tipo de demanda. E, ao invés de buscarmos assegurar um direito amplo das mulheres, estaremos construindo exceções em cima de diagnósticos que reforçam a idéia de que a sociedade não deseja o nascimento de deficientes e, por essa razão, nesses casos, as mulheres são autorizadas a fazer o aborto. Não se trata de uma escolha de um sujeito diante de um caso concreto, mas de um valor assumido pela coletividade de que não queremos uma “geração perdida” cheia de pessoas com deficiência. Isso é grave.
Entendo que o caso em questão pode representar um avanço por promover o alargamento das possibilidades legais de realização do aborto. No entanto, não estamos diante de uma operação aritmética simples, mas de uma equação complexa que exige uma reflexão mais abrangente. Mesmo em nome da proteção necessária das mulheres que se encontram diante dessa grave epidemia, não podemos relativizar a forma como a sociedade se posiciona diante das pessoas com deficiência, a ponto de colocar os casos de diagnóstico fetal de microcefalia no mesmo patamar das outras três exceções à proibição do aborto. Daí a importância do debate em questão, e a esperança de que essa tragédia de saúde pública não aprofunde o preconceito em relação às pessoas com deficiência. E que permita à sociedade refletir sobre a necessidade de caminhar para a descriminalização do aborto e garantia plena dos direitos de todas as mulheres sobre seus corpos e suas vidas.
* Maria Antônia Goulart é educadora, militante e ativista de direitos humanos, fundadora da ONG Movimento Down